Um aplicativo do gás

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Lembram quando começaram os aplicativos de carona? Muitos condutores, usuários desses aplicativos, tiveram seus automóveis apedrejados, sofreram tocaias e foram espancados. Era a tecnologia, nos termos de uma destruição criativa, pregando uma de suas peças. Foram transformações que proporcionaram uma brutal redução do custo de entrada, aumentando a oferta. A transparência, combinada com a minimização dos efeitos da assimetria de informação, determinaram uma redução de preços jamais vista para o serviço. Na junção de tudo isso estaria a concorrência. Qual a relação disso com o segmento do gás natural? É o que mostro neste artigo.O governo, finalmente, parece ter se dado conta da importância do gás natural para a retomada da economia, para criar empregos e agregar valor. Já não há como esconder que a estrutura da oferta do gás tornou-se inadequada, a favorecer monopólios preguiçosos. Há um bom tempo, em virtude do inexplicável preço dessa matéria-prima, a indústria tem deslocado parte relevante da produção para outros países, como os Estados Unidos. É que lá, depois do shale gas, mais uma peça da tecnologia, os preços sofreram forte queda, sendo determinantes para a recuperação da economia depois da crise de 2009.Por aqui, o gás da camada pré-sal, que exigiu impactante desenvolvimento tecnológico, deveria ter o mesmo mérito do shale gas. Porém, se nada for feito, tende a intensificar o peso morto do monopólio, como é denominada a ineficiência que surge da ausência de mercado. O preço do gás natural já é superior a US$ 14/MMBTU, cerca do triplo do praticado nos EUA e em quase todos os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.No governo Temer, as ótimas ideias do movimento Gás para Crescer não foram suficientes para convencer o Congresso Nacional da importância de um mercado livre para o gás natural. O apoio do governo foi muito tímido. As propostas, transformadas em projeto de lei, pareciam ter o apoio da Petrobras e de outros, que talvez não passassem de um ardil a esconder uma poderosa estratégia para manter tudo como estava.E já começaram as reações às novas iniciativas do governo. Algumas são prosaicas. Culpam apenas os impostos, que respondem por algo como 22% do preço final do gás natural. Mas não é bem assim, e não é difícil explicar. Os 78% dos custos restantes estariam divididos entre a molécula ou o gás propriamente dito (43%), transporte (16%) e margem da distribuidora (19%). Uma redução de 30% nos impostos representaria apenas US$ 0,92/MMBTU de diminuição no preço do gás, mas seria de US$ 3,28/MMBTU se a medida fosse aplicada na estrutura monopolista – exploração, processamento, transporte e distribuição. Logo, é lá que estaria o fator crítico, daí a maior atenção do governo.

Em evento recente, no Ministério de Minas e Energia (MME), a audiência foi brindada com outras pérolas, que fizeram lembrar-me de Millôr Fernandes (“Jamais diga uma inverdade que não possa provar”). Por uma dessas pérolas, se a indústria migrar para o livre mercado, as tarifas aumentariam 191% e 140% em São Paulo e no Rio de Janeiro, respectivamente. Isto é tão verdadeiro quanto uma nota de R$ 4. São estimativas sustentadas em sofismas.

Para que esses percentuais fossem válidos, ou para que a “inverdade fosse provada”, o mesmo gás teria que ser comprado e pago duas vezes (pelos consumidores e pelas distribuidoras), o que é impensável. Há maneiras mais inteligentes para aumentar (realmente) o volume de gás utilizado e entre elas não estaria o consumo virtual. Na prática, quando o consumidor migra para o mercado livre, sua parcela da molécula deixa de ser responsabilidade da distribuidora, reduzindo-lhe os custos correspondentes. Não há, ou são desprezíveis, aumentos de custos para os consumidores que permanecem como cativos das distribuidoras.

Abstraindo-se dessas reações, não é trivial a solução do problema, que, em linhas gerais, implica criar um ambiente competitivo para a compra e venda do gás natural. Por exemplo, é essencial o livre acesso às estruturas de processamento e transporte. Tão essencial e estratégico que o início das discussões já resultou em duas demissões na Petrobras, por discordância ou por diferença de entendimento.

Se o gás é produzido no ponto A, mas consumido no ponto B, para que seja eficaz a livre comercialização os compradores e vendedores precisam saber, em tempo real, o que pode ser transportado. Se o dono do gasoduto é também um agente vendedor, fará de tudo para limitar a competição. Basta não informar a capacidade ainda livre para transporte ou sempre informar um valor muito menor do que o real. Ele criaria, com tal artimanha, uma restrição (virtual) de transporte, que lhe daria poder de monopólio. A assimetria de informações, decorrente da falta de transparência, lhe doaria uma vantagem espúria. A Petrobras, como é de amplo conhecimento, controla cerca de 85% dos gasodutos e opera o restante, sem qualquer obrigação de ser transparente, e não esboçará esforço por isto, pois não há incentivo.

A proposta da Petrobras para o problema, que ela reconhece, consiste em criar a figura de um operador de gasodutos que, durante uma transição, seria por ela controlado. Funciona assim em alguns lugares, mas “nada é tão permanente quanto uma solução temporária do governo”, como dizia Milton Friedman. A proposta, um pouco ousada, deve ter assustado a área econômica do governo.

O gás natural, contudo, pode ser medido nas extremidades A e B do nosso exemplo hipotético. Se o gasoduto tem uma capacidade T de transporte e em B é medido um volume V, a diferença entre T e V indica quanto, a cada instante, há de espaço livre para uso. Então, bastaria tornar público todos os valores medidos, o que eliminaria a assimetria de informações e o poder de monopólio.

Como cumprir tarefa tão estratégica? Mais uma vez, com uso da tecnologia. Com o desenvolvimento, via startup, de um aplicativo, que teria como missão divulgar, em tempo real, com toda precisão e detalhes necessários, os volumes livres em todos os gasodutos da malha de transporte, que seria, claro, de livre acesso.

A operação e manutenção dos dispositivos de medição e comunicação ficaria a cargo do “aplicativo”, a essa altura uma pequena empresa de tecnologia da informação, a criar valor, reduzir absurdamente os custos de entrada, assegurar a competição e eliminar o peso morto do monopólio. O subproduto do aplicativo seria a destruição de um monstro, no caso, o operador do gasoduto, que tinha tudo para ser mais uma camuflagem para fugir da concorrência.

Edvaldo Santana, ex-diretor da Aneel, é vice-presidente de Estratégia da Electra Energy

Fonte: Valor

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